Léa andando pel campo e dando risada com mais dois árbitros.
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Léa Campos e a guerra pelo direito de apitar

Taís Miotti
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Léa Campos atuou como árbitra nos anos 70 e marcou o início da história das mulheres na arbitragem brasileira. Sendo um símbolo de resistência, persistência e foco, inspirou diversas meninas a seguirem suas carreiras dos sonhos, principalmente no meio futebolístico.


Assim como toda história de luta feminina, percebe-se que as mulheres estão cada vez mais presentes em todas as áreas. Como resultado, a evolução silenciosa de antes destas no esporte está se tornando notória e conquistando mais espaço no meio. E isso não somente em campo ou dentro do departamento de futebol das agremiações, como também – e principalmente – nas equipes de arbitragem.

No Brasil, a protagonista da cronologia do arbitramento feminino é, sem dúvidas, a mineira Léa Campos. Sendo a primeira árbitra de futebol profissional do mundo reconhecida pela Federação Internacional de Futebol (FIFA), dedicou sua vida ao esporte e, para dar continuidade em seu sonho de atuar no meio, já teve de encarar e superar o enorme preconceito existente na sociedade da época; a Ditadura Militar; diversas detenções no  Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), – que foi um órgão do governo utilizado principalmente durante o Estado Novo –; além da CBD (antiga Confederação Brasileira de Desportos, antecessora da CBF), que se opunha a sua atuação.

O começo de tudo

Asaléa de Campos Fornero Medina nasceu em 1945 e desde a infância possuía interesse pelo futebol:

“Eu jogava no recreio da escola, e a diretora implicava que não podia, porque eu estava jogando com os meninos. Naquela época tinha aquela coisa: menina para lá, menino para cá”.

Léa Campos, durante entrevista concedida ao Museu do Futebol em 2015.

Na juventude, era grande torcedora e espectadora dos jogos do Cruzeiro Esporte Clube. Tanto que, em união a outras torcedoras cruzeirenses, fundou a T.O.C.A.: Torcida Organizada do Cruzeiro Acadêmico, que se configurava como um grupo de adeptos alvicelestes empenhados em arrecadar dinheiro, que mais tarde seria investido em artigos para a festa azul e branca nas arquibancadas do Mineirão.

O ótimo relacionamento de Léa com o clube lhe proporcionou, na década de 1960, o cargo voluntário de relações públicas. A partir dele, viajou na companhia da equipe de jogadores e fornecia informações oficiais aos repórteres responsáveis pela cobertura dos eventos esportivos.

Já adulta, iniciou a faculdade de jornalismo e focou profissionalmente no desporto, trabalhando no programa da Rádio Nacional em Brasília. Ao retornar a Belo Horizonte, em meados dos anos de 1970, integrou a equipe da Rádio Mulher – importante iniciativa histórica que, mesmo tendo uma vida breve de apenas 6 anos, marcou imensamente a presença feminina no meio desportivo e renderia um texto próprio se fosse redigido em detalhes – sendo comentarista da arbitragem dos jogos masculinos que eram transmitidos pela emissora.

 

Léa Campos trabalhando em um programa de rádio como comentarista de arbitragem
Léa trabalhando em um programa de rádio na década de 1960. Foto: arquivo pessoal.

Nesta época, também deu início aos estudos de arbitração, realizando um curso na Federação Mineira de Futebol. Então, durante oito meses, treinou todas as manhãs juntamente aos soldados do batalhão policial, a fim de estar em perfeitas condições físicas de apresentação no dia do exame de admissão.

 

Críticas e o preconceito contra Léa Campos

Porém, infelizmente, sua evolução e busca pelo renome no esporte veio acompanhada de diversas críticas. Nesse sentido, muitas foram expressas de forma absurdamente preconceituosa em charges criadas e divulgadas pela imprensa, além de grupos de mulheres que recolhiam assinaturas com o objetivo de impedir Léa de seguir sua carreira.

Charge onde Léa está apitando uma partida de futebol e os jogadores estão deitados no chão. Ela está dizendo: "levante-se!" a um destes e ele a responde dizendo: "não posso dona juíza! Estou lesionado pelo panorama!" enquanto olha para as pernas da árbitra. Há também outros dois atletas no chão dizendo: "eu também!" e "idem!".
Charge feita pelo cartunista Edgard na década de 1970. Foto: coleção Léa Campos/Museu do Futebol.
Charge que se passa em uma partida de futebol. Há um jogador caído perto do gol do adversário enquanto outro corre para o outro lado do campo, na direção de Léa, gritando: "pênalti lá seu juíz!". Enquanto isso Léa está de mãos dadas com o goleiro da equipe, sem prestar atenção no andamento do jogo.
Charge do cartunista Henfil sobre Léa na década de 1970. Foto: coleção Léa Campos/Museu do Futebol.

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Após diversas tentativas de conseguir sua aprovação nos exames de arbitragem – não porque ela não era capaz, mas sim devido às implicâncias fundamentadas no machismo que fizeram a entidade máxima de futebol da época (CBD) impedir, por mais de uma vez, sua aprovação como árbitra – Léa se submeteu a extensos exames médicos e provou que a estrutura óssea feminina era igual à masculina.

 

Então, após essa comprovação, ela finalmente conseguiu se firmar como profissional?

Ainda não.

 

Persistência e conversa com o chefe de governo

Posteriormente, o presidente da CBD João Havelange (1916-2016) apelou para o artigo 54 do Decreto-lei 3.199 de 1941, instituído por Getúlio Vargas, que alegava que devido a características próprias da natureza feminina, não seria permitido às mulheres a prática de determinados esportes, Léa contra-argumentou que o decreto não se estendia às árbitras de futebol. Não convencido, em uma reunião utilizou a menstruação como exemplo de característica feminina que prejudicaria a mulher em campo e também completou dizendo que enquanto estivesse na presidência da entidade, nenhuma destas apitaria ou jogaria futebol.

Diploma que firmou Léa como árbitra. Foto: arquivo pessoal.

Após receber um convite, em 1971, para apitar o ll Campeonato Mundial de Futebol Feminino no México, Asaléa realizou uma campanha com o objetivo de recuperar seu diploma oficial. Por isso, durante quatro anos reuniu assinaturas, concedeu entrevistas e estudou leis.

Ainda na década de 1970, Campos conseguiu agendar uma reunião com o então Presidente e General do Exército Emílio Garrastazu Médici. Nesta apresentou o impedimento que a impossibilitava de atuar como árbitra no Brasil. Posteriormente, uma semana depois da conversa, a mineira recebeu uma carta firmada por ele que ordenava que a CBD concedesse a ela o diploma de profissional da arbitragem. Desse modo, a Federação de Minas Gerais se retratou com a mesma e lhe entregou o documento que a proclamava árbitra oficial do Brasil e, poucos dias mais tarde, do mundo.

 

Carreira profissional de árbitra e fim da atuação em campo de Léa Campos

Ao passar dos anos, Léa apitou em diversos estados como Bahia, Sergipe, Piauí, Rio Grande do Sul, São Paulo e Minas Gerais. Além destes, acumula passagens por vários outros países da América Latina e também da Europa.

Léa apitando um GreNal nos anos 70.
Léa apitando um GreNal nos anos 70. Foto: Coleção Léa Campos/Museu do Futebol.

No entanto, aos seus 29 anos, em 1974, sofreu um acidente de trânsito que a impediu de continuar atuando com a arbitragem de campo e encerrou sua carreira de muita iniciativa e coragem em prol da liberdade feminina de decidir o próprio futuro, não somente no meio do esporte, como também nas mais variadas áreas que antes eram restritas e permitiam ingresso apenas aos homens.

Atualmente, a ex-árbitra reside nos Estados Unidos, tendo se mudado para lá em 1993, e ainda se encontra como figura importantíssima na busca dos direitos das mulheres, em especial no futebol.

Léa no Mineirão, em 2014. Foto: revista oficial do Cruzeiro.

Taís Miotti

Economista falando de futebol nas horas vagas.
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